Desobediências, revolucinhas e recomeços

Uma jornada íntima e corajosa sobre o poder de recomeçar, desobedecer expectativas e acolher as pequenas revoluções que transformam a vida de dentro pra fora.

Neste ensaio:

8 minutos de leitura

Já diria sabiamente o meu grande amigo Marcelo Correia, na nossa música Um Passo por dia:
“todo dia é dia de recomeçar.” 

Essa é uma das coisas mais significativas que eu aprendi nos últimos anos, um mantra que eu carrego comigo e que me lembra que nada nem ninguém está 100% pronto, que recomeçar não é demérito, não é fracasso. Cada vez que a gente finalmente se autoriza a recomeçar, seja do tamanho que for, isso ativa na gente uma potência que transforma a frustração em aceitação, a crise em convite pra reflexão e a queda em passo de dança.

Esses dias, ouvi o Simon Sinek falando que uma das coisas mais importantes pra gente se desenvolver, pessoal ou profissionalmente, é manter-se como um aprendiz diante da vida. Ele diz: “eu não me considero expert em nada, e não tenho mais medo de fazer as perguntas que parecem burras em uma conversa ou reunião”.

Confesso que ainda tenho vergonha disso, mas hoje meu desapego é bem maior do que era no passado. Cresci sendo a aluna que sentava na primeira fileira, queria entender tudo e, o mais importante: tinha pavor de alguém achar que eu fosse burra.

Provavelmente porque eu mesma não acreditava na minha própria capacidade, evitava perguntar a todo custo porque isso poderia expor a grande impostora que eu sempre fui em todos os espaços que já ocupei. (Já escrevi sobre impostorismo aqui)

Não sei se posso dizer que isso não me afeta mais hoje, mas ao menos tenho consciência e fui, como disse antes, agindo pra me desapegar dessas expectativas internas e externas. 

Pra se permitir recomeçar, é preciso primeiro aceitar a realidade posta: uma crise, uma doença, um problema pessoal ou profissional, algo em você ou na sua vida não faz mais sentido. É preciso se perdoar por não saber todas as respostas, por não ser essa fortaleza que talvez você tenha esperado ser, por não ter percebido que aquele cara era um escroto, por ter agido de certa forma por tantos anos sem se dar conta. A gente às vezes fica preso nesse ponto do processo por semanas, meses, anos, décadas. Mas só ao atravessá-lo que a gente consegue realmente recomeçar.

Se tem uma coisa que eu peguei gosto nos últimos 10 anos, é por recomeçar: deixei pra trás um projeto inteiro de vida que não fazia mais o menor sentido pra mim, me tornei uma viajante mochileira, mudei de país, comecei um novo projeto de vida com um holandês e uma gata, me botei a aprender tudo o que podia sobre burnout e saúde mental porque quem me atendia não sabia o que estava acontecendo comigo, recomecei a escrever, me tornei autônoma mesmo nunca achando que isso seria pra mim, publiquei livro em inglês e português, comecei a criar conteúdo, dar entrevista, palestra.

E quando eu achei que tava bom de recomeço, minha mente me deu de presente mais uma sacudida daquelas, dessa vez rendendo um diagnóstico de TDAH e, meses depois, de transtorno bipolar.

Não é aqui que vou entrar em detalhes sobre esse último ano em especial ainda. Basta saber que hoje eu não acho que exista nada mais importante do que a aceitação.

Até mesmo pra mudar algo, pra transformar uma realidade, é impossível fazer isso sem primeiro passar um bom tempo habitando esta realidade com os olhos honestos de quem a enxerga como é, e não como ela queria que fosse. Deixa eu dizer com todas as letras, e dar destaque pra não correr o risco de você passar sem ler com toda a sua atenção: 

E antes que você se deixe levar pelo inevitável incômodo dessa conclusão: não, esse não é um pensamento derrotista. Aceitar não significa estacionar na aceitação. Significa permitir-se transitar pela aceitação, porque não há como dar o próximo passo antes de passar por ela.

Eu jamais teria conseguido me recuperar do burnout se não tivesse sentido toda a dor de aceitá-lo: de entender que o meu corpo tinha ultrapassado o limite, que a minha relação com o trabalho era adoecedora, que muita ideia que eu comprei como verdade era mentira.

Eu jamais teria conseguido atravessar os traumas e gatilhos se eu não tivesse aceitado a verdade sobre os abusos que já sofri, e também a verdade sobre o que eu ganhava em troca me mantendo como me mantinha. Hoje, eu entendo que é absolutamente inviável viver sem aceitar as necessidades funcionais das minhas neurodivergências, sem aceitar as minhas sensibilidades, sem aceitar as demandas e limitações do meu corpo e, sobretudo, sem aceitar os meus desejos.

Desobediência consciente

Há alguns anos, eu gravei um vídeo falando sobre a relação entre obediência e burnout, inspirado em um livro da escritora Gretchen Rubin em que ela descreve um perfil de pessoas que tem muito mais facilidade em corresponder a expectativas externas do que internas como obedientes

No livro, ela explica que os obedientes seguem facilmente às regras impostas pelos outros, atendem aos pedidos de amigos e familiares, mas nunca conseguem cumprir os compromissos que firmam consigo próprios. A descrição da pessoa obediente nesse livro (que eu traduzi e liberei em PDF aqui) é a tradução mais impecável que já encontrei da pessoa que eu era até o meu segundo burnout.

Apesar de não ter mais a admiração por esse livro que eu tinha na época (ele acaba reduzindo e individualizando questões complexas), não tenho como negar o quanto essa compreensão de obediência como uma tendência de comportamento (que muita gente não tem) me ajudou e me transformou. 

Hoje, procuro olhar com sensibilidade e responsabilidade pra isso, investigando sobretudo por quê algumas pessoas agem assim e outras não. E muito desse olhar você não vai encontrar no livro, e nem no meu vídeo de 2017. 

Já hoje, eu me pergunto: por que, por exemplo, percebo os brasileiros tendo um perfil muito mais obediente do que os holandeses, que tendem a um comportamento mais questionador? O que isso diz sobre a nossa história, nossas raízes sociais, nossos antepassados, nossa cultura e nossa realidade sócio-econômica? Por que mulheres são treinadas a obedecer muito mais do que homens? Por que aquele ditado, “quem pode manda, quem tem juízo obedece” é tão forte no nosso inconsciente coletivo, colonizado e com uma história tão longa e violenta de escravização?

Entendo que exista uma relação profunda entre essa herança que está no sangue da maioria de quem nasce no Brasil, experiências vividas ou testemunhadas de abuso, a necessidade de mascarar qualquer coisa que desvie do “normal” (que de normal não tem nada), e o impulso por obedecer.

Assim como o corpo tem as respostas automáticas aos estressores (luta, fuga ou congelamento), a obediência é uma resposta automática que a gente desenvolve pra não correr o risco de perder o pouco espaço que tem.

Cabe dizer que, quando falo de obediência e desobediência, não problematizo o necessário papel de um mínimo de ordem e civilização pra que possamos conviver coletivamente: não é sobre desobedecer normas de trânsito e furar o sinal vermelho, ou desobedecer as convenções sociais que sugerem que a gente dê bom dia, fale “por favor” e “obrigado”. Falo de desobedecer a tirania e o autoritarismo que a gente encontra em sistemas educacionais, políticos, familiares e – sim – dentro da gente mesmo.  

Viciada em tentar agradar o mundo – e negligenciar a si

Ilustracao por Marcos Oliveira Mos

Em inglês, existe a expressão people-pleaser, que não tem tradução exata mas seria uma compulsão por agradar. Quem convive com essa necessidade emocional constante de ser bem-quista por todos acaba dando muito mais atenção para o mundo externo do que para sua voz interior, negligenciando suas necessidades e desejos. 

Mulheres, especialmente, tem a tendência de apresentar esse tipo de comportamento. Somos treinadas pra agradar e silenciar nossas vontades – mas não precisa ser assim. 

É possível saber qual o nível de vício de agradar e obedecer aos outros, e também o que está predominantemente por trás dessa necessidade: se ela vem de padrões rígidos de pensamento, de um hábito enraizado ou de uma tendência à evitação de emoções difíceis. Aqui tem uma autoavaliação que pode te ajudar a começar.

No meu caso, minha necessidade de obedecer e agradar está bastante ligada à evitação de conflitos e sentimentos difíceis – sequer pensar em desagradar alguém me dá mal-estar físico.

Ainda tenho muita dificuldade em falar não diretamente, sinto uma descarga emocional intensa quando me posiciono com mais firmeza em um assunto e sou muito mais propensa a honrar compromissos com outras pessoas do que comigo mesma.  Mas isso é uma prática, e não existe perfeição. A gente aprende, recomeça todo santo dia, e o avanço acontece: há 10 anos, meu resultado da autoavaliação teria sido quase 3x mais alto do que hoje.  

Se você se identifica com esse meu relato, já deu o primeiro passo, que é trazer esse olhar pra consciência. Te sugiro, também, começar observando a facilidade com que você aceita convites, pedidos, propostas, e a dificuldade em recusá-las, mesmo quando sabe que não vai conseguir – ou que não quer. 

Uma coisa que me ajuda muito é usar o tempo a meu favor: hoje em dia, é raro eu aceitar algo de cara – seja um convite de alguém ou até mesmo uma ideia que eu mesma tenho. Sempre que posso e lembro, me dou pelo menos uma noite de descanso pra avaliar algo novo.

Esse tempo é ótimo pra nos dar um espaço emocional e até físico do outro, e assim a gente consegue se escutar melhor. Eu sei que parece que tudo precisa ser pra ontem, que as respostas precisam ser imediatas, mas vai por mim: em 99% dos casos, não é assim.

Menos revolução, mais revolucinha

Outra coisa que eu ando trabalhando internamente pra desconstruir é a minha mania de grandeza (só pelo tamanho desse texto, você já pode concluir que eu ainda tenho muito chão pela frente). 

Durante um encontro da Comunidade Recomeçar, a Nanda Rebouças leu um texto em que falava sobre precisar mudar tudo o tempo todo, algumas expectativas nos sobrecarregam.

O texto dela ressoou muito com algo que eu vinha já matutando há um tempo: essa coisa de mudar o mundo é uma baita viagem. O mundo é muita coisa, muita gente. Vou lá saber do que o mundo precisa?

Tem uma fala maravilhosa da filósofa indiana Vandana Shiva em que ela fala exatamente isso, e desde que assisti o vídeo, essa ideia ficou tatuada na minha mente. Ao comentar o texto da Nanda, falei sobre como essa ideia de super mudanças, de revoluções é algo que tem me cansado só de pensar. E que ao invés de revoluÇÃO, eu tava mais pra revoluCINHA. 

Algumas semanas depois, descobri que infelizmente eu não inventei a palavra revolucinha (olha a mania de grandeza aí!). Tem até uma organização super legal especializada em programas de parentalidade para empresas chamada Revolucinhas

Inédita ou não, pouco importa: o que importa é que a ideia de revolucinha chegou pra ficar na minha vida.

Pequenas, minúsculas coisas que acontecem no nosso dia a dia e a gente tende a desmerecer porque não é grandioso. O mundo foi se tornando global, as tecnologias foram criando plataformas que dão acesso a literalmente bilhões de pessoas, tem seres humanos pisando nessa terra com bilhões de dólares, e isso afetou a forma como a gente enxerga as coisas. Se 20 pessoas curtem uma foto minha, acho pouco. Se eu vendo 100 livros, considero um fracasso. Se caminho 3km, me acho a pessoa mais sedentária que já passou pelo planeta. Se medito 5 minutos, rio da minha própria inaptidão pra um dia virar Monja Milters.

E se você simplesmente tocasse um foda-se pra essa mania generalizada de grandeza? 
E se você pegasse o que aprendeu sobre obediência e atirasse os seus autoritarismos pela janela?

E se você, pra começar, respirasse fundo e pausasse antes de dizer mais um sim automático?
Quem será que sairia do outro lado disso?

Foto de Carol Milters
Carol Milters

Escritora, Investigadora & Facilitadora
Saúde Mental no Trabalho, Síndrome de Burnout, Workaholismo & Escrita Reflexiva


Autora dos livros, "Minhas Páginas Matinais: Crônicas da Síndrome de Burnout" e Um Passo Por Dia: Meditações para (re)começar, sempre que preciso idealizadora da Semana Mundial de Conscientização da Burnout e do grupo de apoio online Burnoutados Anônimos.

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