A vida profissional pode ser um palco em que, sem perceber, vamos ajustando o tom, a roupa, a vírgula do e-mail — até que o personagem toma o lugar da pessoa.
Este ensaio reúne duas reflexões: a primeira, mais íntima, sobre a performance involuntária que o trabalho impõe; e a segunda, baseada em décadas de pesquisa sobre burnout e identidade, sobre o que acontece quando deixamos o figurino nos vestir por completo.
O mundo corporativo é um teatro
Isso não é necessariamente um juízo de valor — é apenas uma constatação objetiva do jogo.
Tem quem perceba o teatro e tenha estômago pra encarar: esses se dão extraordinariamente bem. Tem quem perceba, mas não tenha estômago: pode ser que sejam repelidos pelo sistema, pode ser que se adaptem.
Mas o pior é que muita gente não sabe — ou não quer aceitar — que é um teatro (olha eu aí!).
E a gente vai entrando num personagem da gente mesmo devagarinho, uma vírgula num e-mail por dia.
Quando percebe, já não sabe mais o que é “a gente” e o que é personagem.
(Pense Cisne Negro + A Substância.)
Será que dá pra sobreviver fora do personagem?
Será que ainda tem alguém aqui dentro?
E essa é uma das muitas razões que nos levam ao esgotamento.
Se você está nos 45%, não se culpe por jogar um jogo que foi estabelecido muito antes de você nascer — mas entenda que ele jamais deve valer mais do que a sua própria vida.
Se você está nos 55%, tentar não ver a realidade não muda a realidade. Só faz doer mais.
Deixa o figurino descansar um pouco, nem que seja por um dia, e tenta lembrar de como era ser 100% você.

🔍 A identidade por trás do burnout
Partilhei recentemente uma reflexão mobilizada por um estudo que revelou que 45% dos líderes afirmam precisar representar um personagem no trabalho.
Ainda nos anos 1990, Christina Maslach e Michael Leiter investigaram a fundo as raízes da síndrome de burnout. Eles identificaram um conjunto de fatores capazes de predizer, num extremo, o engajamento — e no outro, o esgotamento.

Uma década antes, o psicanalista Herbert Freudenberger havia sido o primeiro a desenvolver o conceito clínico de burnout, inspirado em sua própria experiência de colapso. Entre os elementos que ele destacou, há um que considero indispensável e que sempre procuro lembrar: o senso de identidade.
Até hoje, nunca ouvi um relato de burnout que não envolvesse a sensação de perder-se de si, de não se reconhecer mais. Esse processo não acontece da noite pro dia: muito lentamente, vamos cedendo ao que se espera de nós (ou ao que acreditamos que se espera), até que não nos reconhecemos mais.
No post original, citei Cisne Negro e A Substância como metáforas desse rompimento interno.
Não é horrível de imediato. Às vezes parece bom — bom demais pra ser verdade.
Mas verdade não é.
E se ambos terminam em tragédia, talvez valha lembrar de um final diferente.
Em O Show de Truman, Jim Carrey vive desde que nasceu em um mundo de mentira, e precisa enfrentar seus maiores medos pra ir atrás do que é real.
Tocar o que parecia céu, mas na verdade era cenário, é quase um rito de iniciação.
E ele decide ir embora, mesmo sem garantias, porque todo o conforto que tem naquela bolha é fictício.
É duro encarar certas realizações, como a de que o mundo corporativo é um teatro.
É duro nos vermos adoecidos, colapsados, porque negligenciamos uma sabedoria que sempre esteve em nós e demos voz a demandas de quem sequer se importa tanto assim conosco.
Mas negar o palco não o faz desaparecer — só adia o momento em que corpo e alma cobram o preço.
E aumentam os juros.
Não há como saber o que há do outro lado da porta.
Mas, depois de vê-la, jamais haverá como fingir que ela não existe.






