O mundo corporativo é um teatro.

Ensaio sobre autenticidade e esgotamento no trabalho. Carol Milters reflete sobre como o “figurino corporativo” nos distancia de nós mesmos e sobre o papel da identidade na síndrome de burnout.
3 minutos de leitura

Neste ensaio:

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A vida profissional pode ser um palco em que, sem perceber, vamos ajustando o tom, a roupa, a vírgula do e-mail — até que o personagem toma o lugar da pessoa.

Este ensaio reúne duas reflexões: a primeira, mais íntima, sobre a performance involuntária que o trabalho impõe; e a segunda, baseada em décadas de pesquisa sobre burnout e identidade, sobre o que acontece quando deixamos o figurino nos vestir por completo.


O mundo corporativo é um teatro

Isso não é necessariamente um juízo de valor — é apenas uma constatação objetiva do jogo.

Tem quem perceba o teatro e tenha estômago pra encarar: esses se dão extraordinariamente bem. Tem quem perceba, mas não tenha estômago: pode ser que sejam repelidos pelo sistema, pode ser que se adaptem.

Mas o pior é que muita gente não sabe — ou não quer aceitar — que é um teatro (olha eu aí!).
E a gente vai entrando num personagem da gente mesmo devagarinho, uma vírgula num e-mail por dia.

Quando percebe, já não sabe mais o que é “a gente” e o que é personagem.
(Pense Cisne Negro + A Substância.)

Será que dá pra sobreviver fora do personagem?
Será que ainda tem alguém aqui dentro?

E essa é uma das muitas razões que nos levam ao esgotamento.

Se você está nos 45%, não se culpe por jogar um jogo que foi estabelecido muito antes de você nascer — mas entenda que ele jamais deve valer mais do que a sua própria vida.
Se você está nos 55%, tentar não ver a realidade não muda a realidade. Só faz doer mais.

Deixa o figurino descansar um pouco, nem que seja por um dia, e tenta lembrar de como era ser 100% você.


🔍 A identidade por trás do burnout

Partilhei recentemente uma reflexão mobilizada por um estudo que revelou que 45% dos líderes afirmam precisar representar um personagem no trabalho.

Ainda nos anos 1990, Christina Maslach e Michael Leiter investigaram a fundo as raízes da síndrome de burnout. Eles identificaram um conjunto de fatores capazes de predizer, num extremo, o engajamento — e no outro, o esgotamento.

Uma década antes, o psicanalista Herbert Freudenberger havia sido o primeiro a desenvolver o conceito clínico de burnout, inspirado em sua própria experiência de colapso. Entre os elementos que ele destacou, há um que considero indispensável e que sempre procuro lembrar: o senso de identidade.

Até hoje, nunca ouvi um relato de burnout que não envolvesse a sensação de perder-se de si, de não se reconhecer mais. Esse processo não acontece da noite pro dia: muito lentamente, vamos cedendo ao que se espera de nós (ou ao que acreditamos que se espera), até que não nos reconhecemos mais.

No post original, citei Cisne Negro e A Substância como metáforas desse rompimento interno.
Não é horrível de imediato. Às vezes parece bom — bom demais pra ser verdade.
Mas verdade não é.

E se ambos terminam em tragédia, talvez valha lembrar de um final diferente.
Em O Show de Truman, Jim Carrey vive desde que nasceu em um mundo de mentira, e precisa enfrentar seus maiores medos pra ir atrás do que é real.

Tocar o que parecia céu, mas na verdade era cenário, é quase um rito de iniciação.
E ele decide ir embora, mesmo sem garantias, porque todo o conforto que tem naquela bolha é fictício.

É duro encarar certas realizações, como a de que o mundo corporativo é um teatro.
É duro nos vermos adoecidos, colapsados, porque negligenciamos uma sabedoria que sempre esteve em nós e demos voz a demandas de quem sequer se importa tanto assim conosco.

Mas negar o palco não o faz desaparecer — só adia o momento em que corpo e alma cobram o preço.
E aumentam os juros.

Não há como saber o que há do outro lado da porta.
Mas, depois de vê-la, jamais haverá como fingir que ela não existe.

Com amor,

Foto de Carol Milters
Carol Milters

Escritora, facilitadora, divergente.
Saúde Mental no Trabalho, Síndrome de Burnout, Workaholismo & Escrita Reflexiva


Autora dos livros, "Minhas Páginas Matinais: Crônicas da Síndrome de Burnout" e Um Passo Por Dia: Meditações para (re)começar, sempre que preciso ,conselheira do Instituto Bem do Estar, idealizadora do grupo de acolhimento Burnoutados Anônimos e do Ecossistema Recomeçar.

Com amor,

Foto de Carol Milters
Carol Milters

Escritora, Investigadora & Facilitadora
Saúde Mental no Trabalho, Síndrome de Burnout, Workaholismo & Escrita Reflexiva


Autora dos livros, "Minhas Páginas Matinais: Crônicas da Síndrome de Burnout" e Um Passo Por Dia: Meditações para (re)começar, sempre que preciso idealizadora do grupo de acolhimento Burnoutados Anônimos e conselheira do Instituto Bem do Estar.

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