(minúscula memória de um circo de horrores)
Crescer tirando 10 na prova.
Passar mais tempo desenhando a margem do desenho do que desenhando.
Ter as cores do mundo pré-determinadas, ordenadas.
Observar silenciosamente para onde os olhares de admiração se voltam na sala –
e para onde os sussurros de julgamento apontam.
Assimilar.
Digerir.
Internalizar como se fosse meu.
Renovar minhas células com a doutrina do mundo.
Domesticar-me.
Sorrir e agradecer a oportunidade de estar no picadeiro.
Esquecer de que isso não é a inteireza do que eu sou.
Estranhar o que vejo no espelho.
Me render à performance pra justificar,
pra ser vista,
pra ser importante.
Baixar a cabeça,
agradecer por ter à quem baixar a cabeça.
Ao baixar a cabeça, notar o corpo.
As células em metástase.
O estranhamento, a falha na matrix.
Dissociar.
Me perceber uma personagem de mim mesma.
Dar um passo atrás.
Observar o circo.
O picadeiro.
Os maus tratos.
Os engolidores de fogo com suor no rosto e lágrimas nos olhos.
Os equilibristas escondendo as cicatrizes sob a fantasia.
Os poucos trapezistas voando alto –
porque sabem da rede confortável que os ampara ao despencar.
Fugir do circo.
Vê-lo pegar fogo.
Não me reconhecer fora do picadeiro.
Olhar em volta e ver só picadeiro,
trapezista,
equilibrista,
engolidor de fogo,
pipoca e algodão doce.
Pensar:
o que será de mim sem o chicote?
Roubar pra mim um chicote –
só por precaução.
Vai que é só assim que eu consigo brilhar?
Vai que é só assim que eu consigo comover?
Me ver incapaz de segurar o chicote.
Sentir falta do mando, do controle, do dedo apontado –
não por saudade,
mas por me acreditar incapaz de funcionar sem ele.
Vagar sem destino.
Encontrar um vilarejo.
E outro.
E outro.
Lonas rasgadas.
Chicotes em decomposição.
Canção, poesia, cor.
Fogo, suor,
lágrimas e cicatrizes abertos,
escancarados.
Não estou só.
Vejo alguém indo em busca do chicote.
Às vezes é tudo o que a gente conhece.
Às vezes é tudo o que a gente acha que precisa.
A gente respira juntos.
Baixa a cabeça pra lembrar do corpo.
As células em restauração.
O maravilhamento, a libertação.
A gente expande.
Lembra que é muito mais do que o mando.
Se permite brincar.
Olha em volta e percebe que o circo é um pedacinho ínfimo,
estúpido, distante, desnecessário.
E que talvez seja possível –
e até interessante,
viver um pouco sem lona,
sem margem,
e – que ousadia!,
sem patrão.