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Deixar florescer além dos muros: por onde tenho andado internamente

Já tem quase dois anos que entrei, do lado de cá, em uma nova temporada de autorreflexão intensa. Graças a um empurrãozinho de uma depressão sazonal e a um episódio intenso de descompensação emocional, também tenho aprendido imensamente sobre as minhas divergências, necessidades e também (olha ela!), desejos. No meio e ao redor disso tudo, ando em profunda observação interna sobre o meu papel profissional; me permitindo sentir as dúvidas, os incômodos, as desilusões e também as possibilidades.

Vivi intensamente a empolgação de idealizar uma organização sem fins lucrativos especializada em burnout. O nome era potente: International Burnout Institute. Tinha domínio, identidade visual, rede de embaixadores. Tinha tudo para ser lindo. E foi, enquanto durou.

Me afoguei no meu próprio sonho antes que ele começasse a se realizar. Tive a coragem de dizer não pra mim mesma em uma empreitada que parecia tão nobre, tão bonita, tão grandiosa, tão capaz de mudar o mundo… mas que me aprisionaria em mim.

Se nos meus primeiros 12 anos de carreira eu cedi ao brilho do que o capital podia fazer na minha vida, agora parecia precisar pagar penitência, como se estivesse em dívida com o mundo. Como se eu precisasse provar para alguém: “Olha, eu ajudo as pessoas. Eu consigo suportar a dor do outro.” Mas não é fácil assumir a porção egoísta e vaidosa que existe nos papéis de cuidado e amparo da vida humana.

Me ceguei por ela em mim e em muita gente: fui incapaz, por tempo demais, de aceitar que era possível experimentar abusos em meio a quem, aparentemente, “só quer ajudar”. Achei que, fugindo de um mercado absurdamente voltado a fins lucrativos e me refugiando em uma indústria voltada ao cuidado e bem-estar, estaria a salvo.

Não estava.

Aqui narro apenas uma dessas experiências, talvez a primeira, que aos poucos percebi ser mais regra do que exceção. Vivi e testemunhei humilhações, segurei na mão de amigos e amigas que fiz nesse caminho, e eles seguraram na minha. Cheguei a brincar com um deles: “Se for para ser tratada assim, que seja com carteira assinada, bom salário e plano de saúde.”

Que “trabalho cheio de propósito” é esse que normaliza a precarização? Que performa bem-estar no trabalho como um novo mecanismo de controle? Que normaliza o workaholismo? Que coleciona profissionais de saúde mental esgotados ao final de cada Setembro Amarelo?

Hoje entendo que não há como garantir a pureza plena das intenções. Ninguém é tão bonzinho assim.

Precisei atravessar um burnout para entender que a empresa que se dizia minha “família” (sim, sou millennial e caí nessa) não queria nada além da minha hiperprodutividade e dependência emocional. Depois, precisei atravessar outro burnout para entender que, ao tentar me metamorfosear no que acho que o ambiente demanda de mim, meu corpo responde se despedaçando por inteiro. E o tal ambiente, vendo o Frankenstein em que me transformo, me descarta como um canudo de papel.

Pra que fazer manuais se eu posso fazer poesia?

Nessa última temporada (que ainda não terminou), me parece que o chacoalhão da vida tem sido me lembrar que eu preciso bancar o que eu quero. Sem subterfúgios. Sem branding. Sem discurso de nobreza. Sem missão, visão e valores. Sem dizer que é “pelo outro”, “pelo mundo”, quando na verdade é por mim. Não que isso tudo não seja útil – mas talvez o que preciso lembrar é justamente que não precisa ser útil. 

Eu gestei, de certa forma, um projeto belíssimo, que se conecta com uma atuação que é genuína em ampliar a compreensão – minha e de quem mais estiver interessado, sobre temas relacionados ao burnout, à saúde mental no trabalho, ao bem-estar e bem-viver, considerando as complexidades e a multiplicidade dos fatores (sociais, culturais, fisiológicos, emocionais, relacionais). 

Ao mesmo tempo, eu vi a artista em mim sendo abafada pela obsessão por utilidade. Meu sol em Virgem ofuscando o ascendente em Sagitário. A planilha passando por cima da pintura. 

Um dia, após uma sessão de terapia, eu escrevi longamente em um fluxo de consciência intenso. E uma das coisas que escrevi foi: “pra que fazer manuais se eu posso fazer poesia?” 

Depois que essas palavras atravessaram os meus dedos, nada nunca mais foi o mesmo dentro de mim.

Não preciso mais que ninguém me lembre, porque o meu corpo sabe muito bem o tamanho da conta que chega no final. E mais: nem se trata apenas de escolher o que não me adoece, mas de escolher o que me dignifica.

Precisei elaborar o luto de que não preciso mudar o mundo. Mergulhar na humildade de entender que eu sei lá o que o mundo precisa; o mundo é muita gente. Precisei encarar de frente minha necessidade de parecer uma “boa pessoa” para enxergar meus próprios remorsos, minha sombra, minhas dependências emocionais. Pra daí, quem sabe, olhar em frente de um jeito mais sincero comigo mesma, e com quem minhas mãos alcançam. 

E é neste ponto que me situo hoje. Entendendo um pouco mais do que antes, mas nem tanto que possa me cegar de certezas. Ainda desenhando um projeto de mim, pedalando a bicicleta devagarinho enquanto reviso o freio os pneus, coloco um cestinho com flores, deixo ela mais colorida, e aprendo que posso me mover no meu próprio ritmo. Que o meu jeito também é jeito, absorvendo e coletando o mundo, não precisando ser atropelada por ele.

Ainda estou aqui, numa velocidade pra chamar de minha.

Ando experimentando uma vida um pouco mais nômade, vivenciando as dores e delícias da flexibilidade. Tenho passado mais tempo perto da natureza, reaprendendo a sentir o gosto do que as dores pareciam ter tirado de mim.

Publico conteúdos autorais, mesmo que sem agenda, experimentando o que existe além das fronteiras da rigidez e dos ditames dos algoritmos. Aos poucos, vou (re)construindo uma programação mais regular, que me ajuda a manter a rotina e sentir conexão com quem está aí do outro lado. Não estar constantemente presente nas plataformas não me causa ansiedade: eu sei que o legado está aí pra quem quiser e precisar acessar, e por hoje isso basta. 

Tenho mais ideias de livros para publicar do que funções executivas pra me dedicar a uma até o fim. Aceito que o momento é de pensar divergente: estar aberta, absorver o mundo, e só depois, só depois, filtrar, focar de forma mais incisiva. Faço palestras, facilito oficinas de escrita e participo de eventos sob convite e análise, pois ainda tenho dificuldade em pisar (mesmo que virtualmente) em alguns desses espaços sem cinismo.

Continuo recebendo os Burnoutados Anônimos na última sexta-feira de cada mês, e em setembro celebramos 5 anos de existência.

E minha prioridade hoje é a comunidade Recomeçar. Ela tem sido meu fio condutor profissional dos últimos seis meses, um espaço que tem sido âncora pra mim e pros quase 30 membros de 5 países diferentes que comparecem aos coworkings quinzenais e oficinas mensais. Pra saber mais e assinar grátis por 7 dias, aqui ó.

Pra que fazer Substack que eu sou escritora?

Sentei pra escrever um texto brevíssimo, eu juro. Mas eu não sei ser brevíssima, e a essa altura do campeonato eu não tenho a menor vontade de ser quem eu não sou. 

Mas foi esse ensaio maravilhoso sobre a plataforma Substack, que tem sido vista como a melhor alternativa pra criação de conteúdo entre escritores e líderes de pensamento, que sacudiu legal a minha cabeça. E essa sacudida desenrolou todo esse fio que chega até aqui. Vai saber. 

Encontrei o ensaio quando acessei, por acaso, o Substack do autor Seth Godin. No seu perfil, ele publicou o link desse texto simplesmente dizendo: “não vou postar aqui porque não acho que o Substack atenda criadores tão bem quanto a web aberta”. Achei ousado, e ao mesmo tempo senti que conversava com algo que eu vinha sentindo, mas não sabia nomear.

O Anil Dash, autor do ensaio, já abre dizendo “o e-mail está aqui há anos. Mas a razão pela qual a Substack quer que você chame seu trabalho criativo pelo nome da marca é porque assim eles controlam seu público e distribuição, e eles querem possuir seu conteúdo e voz também.”

Aqui talvez caiba uma reflexão mais longa sobre a privatização da criatividade, que é algo que também me lembra desse vídeo genial do Felipe Vassão sobre música como experiência x mercado musical. 

No meio dessa reflexão toda, dessa ebulição que acontece dentro e fora, me parece que aqui existe um ponto de orientação importante: eu não escrevo tweets ou posts de Instagram; eu sou escritora. Não quero restringir a minha atuação e as minhas criações, sejam elas quais forem, às marcas que as veicularem. 

Não quero depender de uma empresa para mandar em mim, explorar minhas capacidades até o sumo e, com isso, preencher minha necessidade emocional de validação. Em 2020, quando publiquei meu primeiro livro, eu fazia lives no Instagram 2x na semana, e quase burnoutei pela 3a vez. Aprendi na dor que eu não posso depender de um algoritmo imprevisível em uma plataforma cujo único fim é maximizar o lucro. Hoje, me proponho mais essa mini-revolução, de não depender de uma empresa privada pra nomear o que eu faço, pra determinar pra quem isso chega, pra me dar a ilusão de alcance infinito.

Um pequeno grande parêntesis: tecnologia e comunicação digital são temas de interesse e pesquisa de décadas; meu TCC da graduação propôs aplicar um conceito da antropologia à experiência em redes sociais (na época, quando tudo era mato e a rede social era o Orkut!). Aqui em 2025, entre tudo isso que já comentei, tenho trabalhado em uma iniciativa de preservação de mundos virtuais que pesquisa o metaverso e dispõe uma rede de profissionais que olha para essas culturas digitais desde os seus primórdios e, ao mesmo tempo, já está lá em 2050 em termos de entender pra onde as tecnologias estão indo.

Um conceito que o Julian Reyes, diretor dessa iniciativa, me comentou ontem quando falei desse ensaio pra ele, é a ideia de jardim murado (plataforma fechada, ecossistema fechado). A web como um todo tem áreas abertas e fechadas, e lá quando era tudo mato e tudo utopia, o sonho era justamente que tivéssemos esse vale encantado de possibilidades. 

As redes sociais pareciam que iam nos fornecer isso, mas o sistema de incentivo financeiro (leia-se anúncios, dados e acúmulo desenfreado) foi fazendo com que esses espaços se tornassem cada vez mais murados, fechados. Se você plantar uma flor num jardim murado, só quem atravessa o muro pode ver a flor. E o jardim sequer é seu. 

Muitos escritores e escritoras que eu admiro usam Substack hoje. Gosto mais ou menos da plataforma, leio. Mas acho que entendi, finalmente, o meu incômodo com ela – que não se limita a ela. 

Se limita a gente mesmo se limitar tanto.

Pode parecer que o mundo é feito de jardins murados, pura e simplesmente porque eles são os que gritam mais alto, brilham mais forte. Assim como quando você está numa metrópole parece que o mundo é só concreto e fumaça, e daí você anda meia hora e se depara com uma praia, um parque, uma floresta e vê que existe muito mais do que a realidade imediata nos permite enxergar.

Deixar florescer além dos muros

Ironicamente ou não, eu tenho todos os recursos necessários para operar no que o Seth chama de web aberta justamente pela experiência profissional onde tive meu primeiro burnout. Nada se perde, tudo se transforma em algo imensamente valioso – basta que tenhamos olhos para enxergar e consiga lembrar da nossa própria dignidade.

A gente entrega o nosso ouro na mão de quem chega no teu porto a bordo de um transatlântico nos iludindo. De quem faz o canto da sereia e nos explora até a última miligrama, vende por 10x mais, nos dá cinco centavos e ainda te diz que você deveria ter gratidão. De quem coloca muros nos nossos jardins e chama de doença a saudade que a gente tem de olhar o horizonte.

Eu não sei te dizer ao certo pra onde isso vai, pra onde eu vou.

Mas eu hoje sei que não preciso de empresa, de algoritmo, de muro, de transatlântico.

Eu vou é seguir colocando minha canoa de pé, pedacinho por pedacinho. 

Levando comigo, conforme o possível, quem quiser navegar sem pressa, curtindo a paisagem, tendo a coragem de recalcular a rota sempre que for preciso e a presença de espírito de olhar as flores.

Com amor,
Carol Milters 💛

Carol Milters

Escritora & Investigadora da Saúde Mental no Trabalho | Síndrome de Burnout & Workaholismo

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