Uma das leituras mais essenciais para a compreensão e a reflexão sobre a nossa relação com o trabalho, Psicodinâmica do trabalho: casos clínicos reúne seis casos clínicos sob direção do psicanalista francês Christophe Dejours, considerado o pai da psicodinâmica do trabalho.
Para que eu mesma assimile esta leitura, que é breve, porém profunda e bastante significativa, compartilho aqui alguns conceitos fundamentais deste livro e alguns trechos que mais me ensinaram ou comoveram.
Conceitos-chave
1. Psicodinâmica do trabalho
Uma abordagem científica desenvolvida nos anos 80 pelo francês Christophe Dejours, é doutor em Medicina, especialista em medicina do trabalho e em psiquiatria e psicanálise.
A psicodinâmica do trabalho visa investigar o sofrimento psíquico no trabalho, partindo da questão “como os trabalhadores conseguem não ficar loucos, apesar das exigências do trabalho, que, pelo que sabemos são perigosas para a saúde mental?” (fonte)
A psicodinâmica do trabalho procura dar conta não somente do sofrimento no trabalho e das patologias mentais a ele relacionadas, mas também das condições em que o trabalho é fonte de prazer, podendo desempenhar um papel na construção da saúde (sublimação).
Psicodinâmica do trabalho: casos clínicos, Christophe Dejours, 2017
O Brasil é um dos países do mundo onde a psicodinâmica do trabalho é mais bem conhecida e mais discutida – paradoxalmente, é um dos países onde observamos o maior sofrimento psíquico na relação com o trabalho (fonte).
2. Centralidade do trabalho
O conceito da centralidade do trabalho embasa a psicodinâmica do trabalho, já que observa o papel do trabalho nas dimensões psicológica, antropológica, sociológica e econômica.
O trabalho ocupa um lugar central no funcionamento da sociedade, na produção das riquezas e nas economias nacionais, assim como no funcionamento psíquico e na construção da identidade. A “centralidade do trabalho” é a expressão empregada na comunidade científica para designar a tese que defendem esses pesquisadores (Jacques de Bandt et al., 1995)
Psicodinâmica do trabalho: casos clínicos, Christophe Dejours, 2017
3. Estratégias coletivas de defesa
São os contratos silenciosos e inconscientes que os trabalhadores desenvolvem e reafirmam, entre si, no trabalho, para suportarem o sofrimento por ele causado.
As pesquisas em psicodinâmica do trabalho (Dejours, 1999, 1999a) evidenciaram que o sofrimento é inerente ao trabalhar. Frente às pressões, ao sofrimento no trabalho e seus efeitos, os trabalhadores constroem coletivamente estratégias de defesa para minimizar a percepção daquilo que os faz sofrer no trabalho, fornecendo uma espécie de proteção ao psiquismo e a saúde. Esses recursos defensivos são utilizados para mediação, enfrentamento e negação do sofrimento.
Fonte
Essas estratégias vão apagando, pouco a pouco, as individualidades, em nome da sobrevivência coletiva. No estudo de caso do trabalhador argelino da construção civil, fica evidente que as estratégias coletivas de defesa podem, por um lado, promover uma coesão em um coletivo de trabalhadores e, por outro, acabar potencializando o sofrimento emocional (veja alguns trechos abaixo).
4. Convivência estratégica
Um conceito muito pertinente sobre como nos relacionamos com nossos pares, especialmente nas configurações que vivenciamos e observamos no mundo corporativo.
Uma convivência estratégica é uma convivência sem solidariedade, que visa a manutenção de um determinado status no trabalho – muitas vezes, também a ascensão deste:
As pessoas se encontram com frequência fora do trabalho, mas parece que, no fim das contas, são ainda as relações de trabalho que organizam as relações fora dele. (…) O jogo social consiste então em manter boas relações com os colegas e com os chefes, já que a promoção e a carreira se dão em função da boa reputação junto a estes últimos. Portanto, é necessário fazer-se notar, e a lógica estratégica é a da boa agenda de endereços, das boas relações com as pessoas bem colocadas, das relações personalizadas, em suma, de convívio.
Esboça-se, dessa maneira, um novo mundo social para os colaboradores da empresa, que é um mundo de executivos, um mundo feito para os executivos, mas também, e sobretudo, um mundo produzido pelos executivos. A convivência que reina entre os empregados da empresa não é estruturada pela solidariedade.
Psicodinâmica do trabalho: casos clínicos, Christophe Dejours, 2017
5. (Ausência de) Solidariedade no trabalho
Nos estudos de caso, a ideia de solidariedade é trazida com frequência, mas quase sempre em termos da sua ausência.
As lógicas competitivas, individualistas e alienantes do trabalho atual vem erodindo o conceito de solidariedade, que é bem reforçado pela pesquisadora da síndrome de Burnout, Christina Maslach (2005), como um pilar importantíssimo para o bem-estar.
A solidariedade funciona, geralmente, como uma verdadeira prevenção das descompensações, ainda que o objetivo notório da solidariedade não seja a prevenção das descompensações, mas a luta contra a injustiça.
Psicodinâmica do trabalho: casos clínicos, Christophe Dejours, 2017
Destaques do livro
Daqui em diante, todos os parágrafos foram extraídos diretamente do livro Psicodinâmica do trabalho: casos clínicos:
É, muitas vezes, impossível fazer o diagnóstico etiológico em uma única entrevista. Deve-se admitir, então, que, num primeiro tempo, na prática, a atitude racional consiste em estabelecer uma aliança com o paciente sobre um primeiro trabalho a realizar: médico e paciente devem procurar compreender juntos como sucederam os acontecimentos e, especialmente, como os esforços do paciente para resistir à descompensação foram insuficientes
A relação com o trabalho está sempre presente, tanto na construção da saúde mental quanto na gênese da doença. Ou, para dizê-lo de outra maneira ainda, a relação com o trabalho nunca é neutra no que se refere à saúde mental. Porque, se o trabalho pode gerar o pior, como nos casos apresentados neste livro, ele também pode gerar o melhor. Graças ao trabalho, muitos seres humanos têm a oportunidade de desenvolver sua identidade e fortalecer sua saúde mental. Inversamente, aqueles que são privados de trabalho por causa do desemprego são privados do direito de dar uma contribuição à empresa, à sociedade, até mesmo à cultura
Do Capítulo IV
“Centralidade do trabalho” e teoria da sexualidade, Christophe Dejours
As investigações realizadas na clínica e na psicopatologia do trabalho mostram que a adesão às estratégias coletivas de defesa tem um custo psíquico elevado. Na maior parte dos casos, essa adesão da qual depende a integração ao coletivo de trabalho passa não somente pelo consentimento passivo, mas também pela demonstração diante de todos os outros, cada vez que as circunstâncias exigem, de sua capacidade de trazer uma contribuição entusiasta e determinada ao funcionamento da dita estratégia viril.
Quanto mais se sobe na escala das qualificações mais os cargos são tidos coletivamente como um espaço reservado aos homens. Dessa maneira, para terem uma chance de encontrar condições propícias ao reconhecimento das qualidades profissionais e à realização pessoal no trabalho, as mulheres devem seguidamente conformar-se com certas condutas ou integrar um habitus de homem.
No mundo do trabalho, a luta é árdua, a concorrência se torna cada vez mais temível, e ninguém dá nada a ninguém. Assim, para enfrentar o trabalho numa postura e num habitus viris, é necessário um completo engajamento nisso. A virilidade exibida só é socialmente eficaz no mundo do trabalho se não se restringir à superfície e se envolver toda a personalidade.
Do Capítulo V
O assédio moral no trabalho: privação da liberdade, Marie Grenier-Pezé
O trabalho se impõe como um dado social que participa da construção ou desconstrução da saúde física e mental.
No processo de assédio, a repetição, consciente ou inconsciente, das críticas, das humilhações, das culpabilizações e das prescrições paradoxais cria rapidamente um impasse no trabalho de elaboração mental e adquire um poder de refração psíquica. Por outro lado, a impossibilidade de pedir demissão, sob pena de perder seus direitos sociais, é uma barreira à fuga. A subordinação própria à definição jurídica do contrato de trabalho confina o trabalhador em uma toxicidade contextual quase experimental. A obstrução das vias de escoamento das excitações traumáticas leva ao colapso depressivo e à via somática mais ou menos a longo prazo.
Na psicodinâmica do trabalho, uma atenção particular é dada, certamente, aos mecanismos de defesa individuais, mas também às estratégias coletivas de defesa. Estas, destinadas a lutar contra o sofrimento no trabalho, são específicas de cada local e produzidas, estabilizadas e mantidas coletivamente. Trata-se principalmente de lutar contra o medo gerado pelo trabalho opondo a ele uma recusa coletiva de percepção. Na construção dessa recusa, a virilidade social desempenha um papel preponderante. A exaltação viril não oferece somente uma compensação narcisista, ela se torna, às vezes, uma verdadeira ideologia defensiva que, compartilhada por todos os membros de um coletivo de trabalho, veda a expressão do medo e, mais amplamente, do sofrimento no trabalho.
Um líder de verdade deve, para ter êxito, conseguir ignorar o medo e o sofrimento, os seus e os do próximo. O cinismo se torna um equivalente de força de caráter. A tolerância ao sofrimento infligido ao próximo é transformada em valor positivo. O poder social é medido pela capacidade de exercer sobre os outros violências consideradas necessárias, que autorizam a utilização de práticas deletérias como método de gerenciamento para obter a rendição emocional de todos. A criação dos assediadores está baseada, então, na internalização psíquica e corporal de técnicas sistematizadas, permitindo aderir ao mundo do trabalho e se entender com os princípios de pertencimento ao grupo dominante que valorizam tenacidade, disciplina e provas corporais
É a tendência dos open-spaces, do desaparecimento da mesa individual, e até mesmo, nos open-spaces, da ausência de lugar atribuído. Parece menos custoso financeiramente, mas é muito custoso psiquicamente. Ao se reposicionar todos os dias, reinstalar suas ferramentas de trabalho em um espaço anônimo, dessubjetivado, sem fotografias, sem objetos pessoais, enquanto, para realizar o trabalho, a subjetividade será inevitavelmente convocada.
“Na empresa, consideram o estresse um estimulante.
É veementemente aconselhado a cada gestor que o provoque a fim de obter melhores resultados”
Afirmar-se sobre alguém consiste em “colocar pressão” em um inferior hierárquico, dar-lhe objetivos impraticáveis, sem meios e em pouco tempo, e dizer que é um desafio. Colocar pressão, também, quando as pessoas voltam de férias. Afirmar sua autoridade sobre outros passa por este tipo de relação enérgica, enquanto o seu conceito da autoridade, como mulher, passa “pela relação”, especifica a paciente, “pela cooperação, pela consideração do outro, de suas competências profissionais”
O cansaço é inadmissível no trabalho.
Verbalizá-lo publicamente implica afirmar-se, fazer uma escolha, renunciar: ao trabalho ou aos filhos.
Do Capítulo VI
Novas formas de servidão e suicídio, Christophe Dejours
É necessário se debruçar um instante sobre esse mundo da convivência estratégica, por ser essa uma configuração social nova que poderia muito bem ser uma produção específica da cultura dos executivos nas empresas multinacionais high-tech
Negar a si mesmo o próprio sofrimento às vezes é, talvez, uma condição sine qua non para manter e conservar seu lugar.
Para a empresa, o trabalho deve ser a preocupação absolutamente prioritária dos colaboradores. Pedir um tempo parcial é indicar que outra coisa conta tanto quanto a empresa na sua vida. A empresa exige, de fato, docilidade, autocensura, silêncio absoluto sobre qualquer problema pessoal não profissional e, principalmente, submissão total.
O trabalho e a qualidade do trabalho estão totalmente fora de questão no processo desencadeado pela empresa. A única razão das represálias contra a Sra. V. B. é ela não se mostrar submissa o suficiente.
Ceder, desinvestir, é admitir que toda essa implicação subjetiva, ao ser repudiada brutalmente pela empresa, de nada serviu, que ela não nos dá direito a nenhum reconhecimento, que todas as gratificações recebidas até então eram estritamente cínicas e instrumentais, isto é, que fomos enganados, e que agora somos jogados para escanteio. Mas isso não é tudo, é ainda mais difícil: é necessário admitir não apenas que fomos enganados pela empresa, mas que enganamos a nós mesmos.
Enganamos a nós mesmos ao acreditar na empresa, no trabalho, no zelo, na utilidade do esforço, das renúncias, do sofrimento; enganamo-nos nessa crença de que, com o sucesso econômico, vem a emancipação. Certamente, havíamos hesitado em crer e nos lançarmos na aventura. É talvez isso que torne o fracasso ainda mais cruel. Em vez de reconhecimento e emancipação, a Sra. V. B. encontra exatamente o contrário: ao fim de sua contribuição para o esforço econômico da empresa e depois do sucesso, há o retrocesso implacável da injunção à submissão, que logo se torna uma ordem para tirar o time de campo.
Mesmo sem rigidez moral específica, o ato de ceder é duplamente doloroso, até mesmo perigoso. Para superar a crise, é preciso rever toda a sua vida, rever todos os seus julgamentos e convicções, alterar profundamente a sua relação consigo, com os outros e com a sociedade.
É inútil fingir. Diante dessa provação, todos os que se envolveram completamente no trabalho são vulneráveis, e não apenas a Sra. V. B. E todos sofrem com isso. A clínica da demissão é, a esse respeito, incontestável. Apenas não são atingidos aqueles que nunca investiram no trabalho ou na empresa e os que, cínicos, sempre tiveram outra alternativa, prontos a trair aqueles que neles depositaram confiança.
Nenhum trabalho de qualidade é possível sem o envolvimento total da subjetividade. Enfrentar o real do trabalho, isto é, o que se revela àquele que trabalha por sua resistência aos savoir-faire, à técnica, ao conhecimento, isto é, ao controle, implica, para quem não desiste diante das dificuldades, a mobilização de uma inteligência e engenhosidade que passam por transformações da subjetividade e da personalidade.
Trabalhar nunca é tão somente produzir; é, no mesmo movimento, transformar-se a si mesmo.
Essa transformação de si mesmo pela relação com a tarefa supõe que o sujeito que enfrenta honestamente o real aceita ser completamente habitado por seu trabalho, inclusive em seus sonhos. É por isso que todos nós sonhamos com nosso trabalho a partir do instante em que demonstramos muita determinação e obstinação nele.
A empresa é capaz de utilizar a falha tanto como potência de trabalho quanto como retransmissor da desestabilização psicológica, conforme bem entender, bastando, para isso, tomar as decisões administrativas: primeiro, gratificar; depois, repudiar ou perseguir. A empresa explora nossas vulnerabilidades e não há, talvez, nada de condenável nessa atitude, dado que, em alguns casos, podemos também nos beneficiar disso. Em contrapartida, quando a relação com o trabalho é desestabilizada, como no caso apresentado, por formas criticáveis de gerenciamento, há riscos sérios para a saúde mental e física daquele ou daquela pego pela tempestade.
Uma desestabilização progressiva como a da Sra. V. B., em geral, não passa despercebida pelos colegas, e a solidariedade funciona, então, geralmente, como uma verdadeira prevenção das descompensações, ainda que o objetivo notório da solidariedade não seja a prevenção das descompensações, mas a luta contra a injustiça.
A servidão que vai até a submissão como questão central da organização do trabalho é mais importante que o trabalho e a rentabilidade.