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Salsichas, jabutis e a nossa necessidade de validação externa

Neste artigo

7 minutos de leitura

Eu não vou concorrer ao Prêmio Jabuti.
Pra te contextualizar: eu ia concorrer ao Jabuti, um prêmio literário dos mais importantes do Brasil. Uns meses atrás, eu recebi um e-mail da Câmara Brasileira do Livro falando das inscrições para a premiação.

Existem umas coisas que a gente não faz ideia de como funciona:
Como se faz salsicha? 
Como alguém é indicado para um prêmio?

E aí a gente vai descobrindo que os processos são bem menos glamourosos do que parece.
(O da salsicha, então, nem te conto.)

Pois bem.
Eu fiquei muito tentada por aquele e-mail. 

Quando li o regulamento, entendi que seria possível que eu, uma autora independente e iniciante, tentasse minha sorte num prêmio que até quem não é da área já ouviu falar. (Você provavelmente já abriu um livro com os dizeres “finalista do prêmio Jabuti” ou “vencedor do prêmio Jabuti”.)

O tal prêmio Jabuti – que, no caso, é literalmente um troféu em formato de jabuti com letras no casco. Achei literário e literal.

O processo me pareceu bem simples, na verdade: você preenche um formulário, envia o manuscrito e os detalhes do livro, tudo online, e paga um boleto. A única coisa que eu ainda tinha faltando era uma tal ficha catalográfica, que precisa necessariamente ser feita por um bibliotecário registrado (?!). 

O serviço é simples e relativamente barato (paguei R$60 e recebi em 24h no meu e-mail, muito bem feito). A ficha catalográfica, aparentemente, tem um jeito de formatar e compilar a informação do livro que não é acessível a nós, meros mortais. 

Igual à salsicha.

Das coisas que os meros mortais como nós não fazemos ideia dos bastidores

Em posse da ficha catalográfica com uma antecedência invejável, eu usei as semanas que eu tinha pela frente pra fazer o que eu sei fazer melhor: empurrar com a barriga.

E foi a 36 horas do final do prazo de inscrições que eu, no susto, pedi pra Anaí Camargo (que trabalha comigo com assistência virtual e salva a minha pele inúmeras vezes), pra que ela revisasse o regulamento do prêmio e levantasse o que era preciso pra preparar minha submissão.

Ela foi rapidíssima e me explicou tudo. 

Eu testei o processo todo no site. 
Rápido, impessoal e indolor. 

Só faltava pagar o boleto.

Eu já sabia quanto custaria, mas o susto não foi menor: R$ 430 (justiça seja feita, poderia ter sido uns R$ 50 a menos se eu não tivesse deixado pra última hora).

Por todos os prêmios que eu já vi por aí, pelos que já ajudei as empresas onde trabalhei a se inscrever, e pelos que eu tenho visto, recentemente, meus (ex) colegas publicitários exibindo orgulhosamente nas suas redes sociais, R$ 430 não é um valor absurdo.

E é bem justo, considerando que a comissão julgadora tem que, suponho eu, ler um livro in-tei-ro pra poder avaliar.

Mas acontece que, pra mim, aqui em julho de 2021, quatrocentos e trinta reais é bastante dinheiro. No mínimo, o suficiente pra me fazer ponderar por algumas horas.

E foi em altas horas, passada da meia-noite daqui, que eu joguei essa questão numa chamada com minha mãe e minha irmã. Normalmente, eu sou bem decidida e só aviso quando o estrago já tá feito (tadinhas…). 

Nesse caso, contudo, eu senti de perguntá-las: 
“Me ajudem a decidir isso? 
Vocês acham que vale a pena?”.

Minha irmã, que é uma das pessoas mais estudiosas que eu conheço, e que também já teve lá sua experiência com alguns segredos de fazer salsicha, foi me questionando, com bastante carinho, se realmente valeria a pena o investimento.

Ela me disse:
“Eu não questiono a tua capacidade de ganhar. Eu questiono os critérios que são usados em processos como esse”, e foi trazendo exemplos que reforçavam essa tese.

Enquanto a gente conversava, eu fui me dando conta do quanto essa busca pela premiação ainda falava sobre uma parte minha que precisa desesperadamente da validação externa.

E sabe o que é mais doido? 
Eu já tenho a validação externa. 

Eu  recebo comentários e depoimentos de pessoas que leem o que eu escrevo, que ouvem o que eu falo e que falam muito, muito bem disso. 
Pessoas de variados estratos sociais, experiências profissionais, nacionalidades.

Ainda assim, para alguma parte minha muito faminta, isso tudo ainda não é o suficiente.

Nessa chamada com elas, eu relembrei um episódio que aconteceu em 2019. 

Participei de uma seleção para falar em um evento do TEDx aqui na minha cidade, no sul da Holanda. O TED é uma instituição que organiza palestras pelo mundo inteiro e se tornou quase um atestado de excelência para quem já subiu ao palco. 

Eu ainda estava bem abalada emocional e fisicamente por causa da Burnout

Pra ajudar, eu também estava desempregada há um ano, com um processo em aberto no Brasil que só me dava trauma e dor de cabeça, e tinha recém tendo encontrado um psiquiatra depois de mais um ano procurando. 

Apesar do momento, decidi ir. 

Enviei minha proposta de fala, que tinha a ver com burnout, e fui pré-selecionada para apresentar uma versão de cinco minutos em uma seletiva que aconteceria, a poucas quadras aqui de casa.

Um tempão depois que isso tudo aconteceu, eu escrevi e publiquei um texto, em inglês, mas ainda não o traduzi (Freud explica)

Aquela experiência me afetou bastante (negativamente). 

Eu ainda não estava preparada para falar em público, e para um público desconhecido, sobre algo tão pessoal. 

Ainda por cima, tinha o aspecto da competição. 

Poucos minutos antes de abrir o evento, um dos organizadores disse, com a maior naturalidade do mundo, que das 15 pessoas que estavam ali apresentando sua fala, somente duas ou três, no máximo, seriam escolhidas. A tensão na sala era palpável – e eu, que estava na fase de maior sensibilidade e  sobre-excitabilidade da minha vida, sentia o nervoso de cada uma daquelas 15 pessoas.

A tranquilidade nos olhares de quem tem precisa eliminar 5 coleguinhas pra conseguir uma vaga

Ao falar, cada um de nós precisava se posicionar sobre o icônico tapete redondo vermelho do TED e encarar, além da audiência, uma comissão julgadora que anotava e avaliava cada vírgula, cada slide, cada ato falho, e dava uma nota para o que você tinha a dizer.

Ao voltar pra casa, eu tive uma crise de ansiedade que quase evoluiu para pânico – ou talvez tenha sido pânico e eu prefira dizer pra mim mesma que foi mais suave. 

E quando isso aconteceu, eu prometi pra mim mesma que nunca mais ia me colocar em uma situação de precisar me provar pra alguém.

Desde aquele dia, eu nunca mais assisti um TED da mesma forma de antes. 

Porque hoje eu sei que, por mais que eles tentem te fazer sentir à vontade (e eles tentam), o sistema criado por eles é de uma pressão quase insuportável. 

Pra te entregar uma palestra impecável, o nível de preparação prévia é i-men-so. 

Muitas das pessoas que a gente vê ali foram convidadas e não precisaram passar pela salinha do horror que eu passei – mas muitas, muitas, precisaram se vender pra uma comissão julgadora, precisaram usar umas artimanhas e umas técnicas pra convencer aquelas pessoas que seu tema era bom o suficiente, importante o suficiente, e que elas eram boas o suficiente pra ocupar aquele espaço. 

Esse tipo de ambiente pode até fazer algumas pessoas triunfarem. 
Talvez.

Mas, daqui de onde eu vejo, ele também faz muita, muita gente boa, inteligente e com conteúdo pra agregar, entrar em parafuso, desistir, ou entregar uma fração do que poderia, porque não consegue dar conta da pressão.

Por mais que  o processo de inscrição do Jabuti (até o momento) seja muito mais objetivo e tranquilo do que a salinha de horror do TEDx, eu pude encontrar algumas repetições de padrão: a necessidade de reconhecimento por uma instituição externa, o precisar provar pra alguém que você é merecedor daquele reconhecimento. 

Especialmente, o desconhecimento total e completo que a grande maioria de nós tem sobre quais forças realmente operam lá nos bastidores.

Quase dois anos atrás, eu havia feito uma promessa pra mim mesma, que cheguei muito perto de quebrar. 

Graças à conversa não-planejada que tive com minha mãe e irmã, eu pude me lembrar dessa promessa, e garantir não quebrá-la de novo.

Lá em 2019, nesse pacto que eu fiz comigo mesma, eu disse que eu não tentaria mais provar pra um TED da vida que eu merecia ter espaço lá. Que eu focaria meu tempo e energia em fazer o meu trabalho e me preparar pra, quem sabe, um dia, entrar pela porta da frente. 

Sem salinha do horror, sem tirar o lugar do colega do meu lado. 

Hoje, eu também repouso na ideia de que eu sequer preciso de um TED.
Eu sequer preciso de uma validação que me confirme que eu que eu faço todos os dias tem relevância. 
Eu converso com essa parte minha que ainda pede tanto por aplauso e explico pra ela que esse frisson é passageiro. 

Que mesmo que uma pessoa ganhe o maior reconhecimento possível na sua área e tenha o dia mais feliz da sua vida, no dia seguinte, ela volta pra vida. 
E é ali que a coisa precisa valer a pena.

Eu não tenho a menor dúvida que faria a Jennifer Lawrence quando ganhou o Oscar e tropicou na escada indo buscar

A gente perde muito tempo, muita vida e muito fosfato se justificando, se defendendo e se provando. Esse tempo, essa energia (e, muitas vezes, esse dinheiro) poderiam ser usados pra estudar, pra criar e pra realmente fazer o trabalho necessário.

Eu não vou concorrer ao Jabuti. 

Não vou investir energia e dinheiro buscando uma validação que, dentro de mim, na verdade, eu já tenho. 

Também já fiz as pazes com o fato que, se você precisa que eu tenha credenciais externas pra me levar a sério, talvez eu nem faça tanta questão que você me leve a sério. 

Porque se você soubesse como a salsicha é feita, você jamais a consumiria da mesma forma.

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Carol Milters

Escritora, Investigadora & Facilitadora
Saúde Mental no Trabalho, Síndrome de Burnout, Workaholismo & Escrita Reflexiva


Autora dos livros, "Minhas Páginas Matinais: Crônicas da Síndrome de Burnout" e Um Passo Por Dia: Meditações para (re)começar, sempre que preciso idealizadora da Semana Mundial de Conscientização da Burnout e do grupo de apoio online Burnoutados Anônimos.

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Este post tem 4 comentários

  1. Oi Carol
    Que lindo texto!
    Vc trouxe de forma leve e até divertida uma reflexão que considero muito importante e profunda.
    Foi super útil para mim
    Obrigada por isso! 🙂

  2. Paola Falceta

    Carol, te acompanho já faz uns dois anos pelo menos. E parece que te conheço, ainda que não seja verdade, pela tua experiência e forma clara e direta com que tu te relaciona com a vida. Tenho diagnóstico de Burnout há 3 anos, e melhorei muito desde lá. Fui me tratar, mudei de trabalho e também um pouco a forma como eu me relacionava com o mesmo. E o mais contraditório é que sou pesquisadora da área de saúde do trabalhador há anos. E não vi esse adoecimento chegar. Tinha tudo a ver com a validação. Difícil chegar a essa constatação, mas muito necessária para recobrarmos a nossa saúde mental. Obrigada pela tua sinceridade e transparência, precisamos para entender os nossos próprios limites e seguir adiante!

    1. Carol Milters

      Paola, muitíssimo obrigada pelo teu depoimento e pelo carinho nas palavras. Entendo bem e fico feliz de saber que você está construindo uma nova relação com o trabalho. Um grande beijo pra você e se cuide sempre bem!

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