Era uma manhã fria de 16 de novembro de 2017, em uma cidade situada no sul da Holanda, a pouco mais de 20 minutos da fronteira com a Bélgica, e a menos de duas horas da Alemanha. Eu sentava diante do meu laptop com um aplicativo bloco de notas em branco.
Não era pouco o esforço de apenas chegar ali, diante da página.
Durante boa parte das últimas oito semanas, o mero ato de sair da cama demandava um esforço quase sobre-humano no meu corpo exausto e na minha mente paralisada. Tomar banho era difícil, comer era custoso, vislumbrar o amanhã parecia impossível.
Submersa em um episódio severo causado pela síndrome de Burnout, colapso emocional e físico cuja definição clínica foi desenvolvida por um psicanalista alemão nos anos 70, eu me via sem força, velocidade ou direção.
E foi na página em branco que a minha redenção pôde começar.
O começo da minha cura
Foi preciso um incentivo: um chimarrão quente acompanhado de uma água gelada e uma música tranquila. Respirei fundo, e digitei, em inglês: “I’m sitting at a messy study room in my apartment, drinking chimarrão. I see myself surrounded by notebooks, a barely used keyboard, loads of pens of several different colours. Papers full of numbers, boxes, jackets, some laundry (1).”
A partir de uma descrição tão mundana, um mundo se abriu pra mim – não de uma vez só, mas vagarosamente, dia após dia – após muitos dias de escuridão pelos três anos que se seguiram entre tratamentos, leituras e práticas de um mergulho profundo dentro de mim mesma.
Seguindo um exercício chamado Páginas Matinais, popularizado pela artista Julia Cameron (1992), eu fui pondo palavras no papel (digital) dia após dia. Não com disciplina impecável – não raro, eu passava três, cinco, dez dias longe da página. Mais cedo ou mais tarde, entretanto, elas me puxavam de volta.
Foi só após três anos de escrita – que acabaram tornando-se um livro e inaugurando a minha nova carreira, agora como escritora, e graças ao início dos estudos em psicanálise, que eu pude começar a entender o que acontecia nesses momentos, e por que a escrita ainda me é um alento, uma forma de terapia e uma ferramenta de autoconhecimento.
De onde vem a cura
A associação livre é uma das premissas do processo psicanalítico: não há uma agenda, não há um índice programático do que se dizer (ou escrever). As palavras brotam de onde, quando e como precisam. Como disse Freud (1911), “que comunique tudo o que lhe ocorra, sem crítica ou seleção”.
Quando vivemos sobrecarregados de pressões externas e internas, quando o nosso superego torna-se o nosso pior algoz ao filtrar, limitar e determinar o que desejar, o que apresentar ao mundo, o que perseguir na vida e como se comportar, a experiência do papel em branco é, paradoxalmente, libertadora e angustiante.
É preciso coragem para libertar-se de regimes autoritários – internos e externos.
Mais do que isso, é preciso confiar que cada palavra encontra o lugar certo.
É preciso confiar que não diremos (ou escreveremos) a coisa errada na hora errada.
A psicanálise nos acalenta, dizendo: tudo o que você diz faz sentido.
O nosso superego protesta: mas veja bem, esse sentido não é bom para o mundo.
E o inconsciente, exausto de sua imensa força, clama: me deixa falar.
Me deixa ser.
James Pennebaker (2014), psicólogo e pesquisador da escrita expressiva, comprovou em anos e anos de estudos que existe uma relação direta entre o guardar segredos e o adoecimento mental e físico.
No início desse texto, eu trago a célebre frase de Freud, que diz que não guardamos segredos. A fala de Freud conversa com os resultados da pesquisa de Pennebaker: quando tentamos abafar um sofrimento, um trauma, em segredo, ele se expressa na somatização.
Escrita livre e síndrome de Burnout
Em meio a uma sociedade do desempenho (2), com sua positividade tóxica e suas receitas tão completas de como ser, como se vestir, o que e como dizer, a psicanálise se faz mais necessária do que nunca.
Mais de 30% (3) dos trabalhadores brasileiros enfrentam a síndrome de Burnout (mesmo que grande parte sequer tome consciência disso). Herbert Freudenberger (1980), o psicanalista que delineou o conceito de Burnout a partir de sua própria experiência de colapso emocional e físico, explica com clareza: o adoecimento vem, em imensa parte, de rejeitarmos quem realmente somos:
“Se você está se esgotando (…), é imperativo integrar o ‘você’ que foi suprimido por tanto tempo e o ‘você’ da imagem. Embora por muito tempo eles possam ter parecido incompatíveis, você descobrirá agora que eles complementam e se amparam mutuamente. Cada um representa um lado válido de você e pode ser uma fonte poderosa de energia. Se metade dessa energia está sendo usada para suprimir a outra metade, não é de se admirar que você esteja se esgotando.” (Freudenberger, 1980)
Hoje entendo que uma parte fundamental do meu processo de recuperação tem passado pela prática de investigar, registrar e compreender quem eu realmente sou. Os processos terapêuticos de psicoterapia e psicanálise são extremamente úteis nisso, e assim também é a escrita livre.
“O papel aceita tudo”, diz a sabedoria popular. E confiar em um dispositivo que não só nos permita a livre expressão, como também a posterior análise é algo de inegável poder.
Tão importante como o ato de falar (ou escrever), o verbalizar, é o ato de compreender, avaliar e analisar o que foi dito (ou escrito).
No trecho que citei acima, do meu primeiro exercício de escrita livre, começo pelo “eu”, que é o ponto de maior angústia. Digo que estou sentada, como se precisasse me lembrar onde estou (em diversos sentidos).
Também é mais fácil começar descrevendo os arredores do que mergulhando – todo mergulho começa na superfície.
Em seguida, menciono a bagunça – mais à frente no texto, eu falo da desordem que percebo ao meu redor e dentro de mim. Conforme escrevo, vou entendendo o meu entorno e o meu interno. Falo do chimarrão, e mantenho a palavra em português, mesmo escrevendo em inglês. Estou em um país diferente, em uma bagunça interna e externa, e eu busco as minhas raízes ali. Os primeiros objetos que menciono e observo são instrumentos de escrita – cadernos, canetas, um teclado de computador – é como se uma parte minha já entendesse o quanto eu precisava da escrita.
Discussão
Ao pesquisar se era possível pensar em auto-análise (e na escrita como ferramenta para tal), deparei-me com o artigo da psicanalista Yeda Alcide Saigh (2007), em que aponta que a auto-análise talvez só seja realmente possível após um processo realizado com analista – e pelo entendimento do processo psicanalítico. Em minha curta experiência, entendo que isso aponta para um caminho plausível – e que a escrita possa, enfim, ser um recurso importante no processo psicanalítico.
A conclusão que começo a chegar ainda tem mais perguntas do que respostas: qual papel a escrita livre pode ter em um processo psicanalítico? Poderia-se considerar a escrita como uma possibilidade de autoanálise?
Para Fochesatto (2011), “verbalizar o sofrimento, encontrar palavras para expressá-lo permite, senão curá-lo, tomar consciência de sua origem e portanto assumi-lo”. A partir da minha própria experiência, eu corroboro as palavras da psicanalista, e reflito: essa cura nunca foi tão urgente, e a psicanálise nunca foi tão importante.
(Artigo submetido para avaliação do primeiro módulo da formação em psicanálise
pelo Instituto Brasileiro de Psicanálise Clínica, escrito em fevereiro de 2021.)
Notas:
(1) “Eu estou sentada no escritório do meu apartamento, em meio à bagunça, enquanto tomo um chimarrão. Me vejo rodeada por cadernos, um teclado quase sem uso, uma infinidade de canetas das mais diversas cores. Papéis preenchidos com números. Caixas. Casacos. Algumas roupas pra lavar.” (Miltersteiner, 2020)
(2) Sobre a sociedade do desempenho, o filósofo Byung-Chul Han (2017) diz: “O que causa a depressão do esgotamento não é o imperativo de obedecer apenas a si mesmo, mas a pressão de desempenho. Vista a partir daqui, a Síndrome de Burnout não expressa o si-mesmo esgotado, mas antes a alma consumida.”
(3) Pesquisa realizada pela International Stress Management Association Brasil constatou que 72% da população brasileira sofre de alguma sequela de estresse, e 32% sofrem de Burnout. (FILLIPE, 2020)
Referências
FILLIPE, Marina. BOMFIM, Bruno. Precisamos falar sobre burnout. Revista EXAME (2020)
CAMERON, Julia. O caminho do artista (1992)
FOCHESATTO, Waleska Pessato Farenzena. A cura pela fala (2011)
MEZAN, Renato. Que tipo de ciência é, afinal, a psicanálise? (2007)
FREUDENBERGER, Herbert. Burn-out: The high cost of high achievement. (1980)
FREUD, Sigmund. Estudo sobre histeria (1893-95)
HAN, Byung-Hun. Sociedade do cansaço (2017)
INSTITUTO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE CLÍNICA, Módulo 1 – Curso de Formação em Psicanálise (2020-21)
MILTERSTEINER, Carol. Minhas Páginas Matinais: Crônicas da Síndrome de Burnout (2020)
PENNEBAKER, James. Expressive writing: words that heal (2014)
PRYZANT, Evelyn Finguerman. Conversando com Sapienza sobre “a escrita psicanalítica e a psicanálise da escrita”.
SAIG, Yeda Alcide. A auto-análise 150 anos depois de Freud (2007)