Um traço perverso de uma relação tóxica é a sensação de nunca podermos baixar a guarda com quem é abusivo.
A pessoa abusiva parece que sente quando baixamos nossa guarda.
É aí que ela encontra terreno fértil para agir – nos diminuindo, nos criticando e nos submetendo a ela emocionalmente.
Só que isso pode nos colocar numa posição de constante vigilância que só prejudica a nossa saúde – e todas as outras relações.
Isso causa angústia, dor e frustração em quem só quer poder ter o mínimo de autonomia para sentir e existir.
Quem passa por isso, sabe.
Acontece que a gente vai aprendendo a não se entregar totalmente e a não confiar totalmente, nos colocando em uma desconfiança generalizada.
Ficamos com um medo crônico de que qualquer pessoa, em qualquer contexto, possa nos submeter de novo.
É só com tempo, conhecimento e maturidade que vamos aprendendo ao redor de quem a gente pode ser livremente, ao redor de quem a gente precisa se preservar, quais relações vale a pena manter e quais é preciso romper pelo bem da nossa sanidade.
É um trabalho árduo e, sim, injusto.
O trabalho interno parece sempre cair inteiramente a quem sofre o abuso, e não a quem o causa.
E isso é enfurecedor.
Muitas vezes, é possível – e necessário, sim, reivindicar, denunciar, protestar.
Não normalizemos, jamais, o abuso.
Mas o efeito das denúncias e da responsabilização do outro ainda não dá conta do que a gente precisa fazer pra sobreviver emocionalmente.
Pra isso, precisamos parar de invisibilizar a nossa própria dor e nossa própria potência.
Precisamos dedicar a nossa energia às relações que valem, sim, a pena, e às pessoas com quem a gente pode ser livremente.
Reconhecer essas relações.
Agradecer essas relações.
Precisamos aceitar que infelizmente o mundo não é uma terra encantada cheia de pessoas perfeitas – tampouco nós somos.
Precisamos aprender a lidar com a grosseria e com o desrespeito – não passando pano pra ela, mas entendendo que a ofensa do outro jamais pode te definir.
A gente precisa se cuidar todos os dias.
Sobreviver todos os dias.
Saber pra quem e quando manter a guarda alta todos os dias.
Investir tempo, energia e atenção no que nos permite baixar a guarda.
E lembrar, todos os dias, que existe muita vida além da dor.