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Faz uma viagem no tempo comigo rapidinho:
Quando você era estudante, como você se sentia ao ver um ❌, ou até um meio certo numa prova? Que reação você percebia no seu entorno quando você ou alguém muito próximo cometia um erro, tirava menos de 10, ou recebia alguma crítica?
Você consegue lembrar dessa sensação?
Talvez até senti-la no seu corpo, aqui e agora?
Onde ela bate aí em você?
Agora volta no aqui e agora.
No lugar onde você trabalha, e também na sua casa, o que acontece quando alguém comete um erro?
Como você se sente quando erra?
Nesses quase 10 anos entre burnouts, leituras, Burnoutados Anônimos, escritas, meditações, sessões de terapia e trocas com especialistas e com pessoas que atravessam o burnout, ficam evidentes alguns dos fatores que não só nos expõem a um maior risco de adoecer, como também nos mantém por mais tempo longe da nossa capacidade produtiva e do nosso próprio bem-estar.
E hoje eu quero falar contigo sobre um que é tão delicado de encarar quanto essencial para recomeçar: a intolerância ao erro.
Sem meme: que o tal do perfeccionismo não é um comportamento a ser celebrado, muita gente já sabe. Mas ele também precisa ser acolhido e compreendido pra poder, quem sabe, ser superado.
Se eu errar uma vírgula, o mundo vem abaixo
Ano passado, transmiti uma live comentando a famosíssima palestra da Brené Brown sobre vulnerabilidade no meu canal do Youtube.
E eu lembro como hoje a primeira vez que assisti esse TED Talk: foi entre 2015 e 2106, eu estava recém-afastada da empresa onde trabalhava no Brasil pra tirar um sabático (que na verdade era um burnout não-diagnosticado), e quem me indicou foi minha psicóloga da época.
Lembro que fiquei estupefata. Muito daquilo pode ou não parecer básico pra você hoje, mas pra mim, lá atrás, do alto da minha rigidez emocional, da minha ansiedade crônica e da minha sensação de não saber por onde (re)começar, esse foi um primeiro passo e tanto.
Que passo gigantesco foi começar a reconhecer que é inviável sentir alegria sem estar aberto à tristeza, sentir amor sem se abrir à solidão, sentir calma sem se abrir à angústia. E reconhecer, também, que tentar ser impecável é buscar o impossível.
O perfeccionismo me coloca, paradoxalmente, em um complexo de grandeza por achar que posso tanto assim, e de inferioridade por uma profunda e antiga sensação de que, se eu não for impecável, ninguém vai me querer.
No livro A Grande Magia, a escritora Elizabeth Gilbert desmascara o perfeccionismo pelo vilão do Scooby Doo que ele é:
O perfeccionismo nada mais é do que o medo vestido de casaco de pele, andando salto alto e fingindo ser elegante, quando na verdade está aterrorizado.
A Brené Brown descreve exatamente o que a gente precisa lembrar quando se vê enroscado na armadilha do perfeccionismo:
“Ser perfeccionista não é a mesma coisa que dar o seu melhor. O perfeccionismo é a crença que, se eu tiver uma vida perfeita, uma aparência perfeita e agir de forma impecável, isso vai me proteger ou minimizar a dor da culpa, do julgamento e da vergonha. É um escudo. O perfeccionismo é um escudo de 20 toneladas que a gente carrega por aí, pensando que ele vai nos proteger quando, na verdade, é justamente ele o que nos impede de voar.”
Brené brown, A Coragem de ser Imperfeito
Durante o encontro de Julho do Burnoutados Anônimos, a intolerância ao erro apareceu tanto como algo comum a tantos ambientes de trabalho, como à internalização desse perfeccionismo compulsivo. Ele parece uma excelente estratégia de defesa, e às vezes funciona por anos, décadas, por uma vida inteira. Mas cobra um preço inestimável na nossa autoestima, nas nossas relações e, tantas vezes, na nossa saúde.
E a perfeição lá existe, por acaso?
Pensa comigo: se a perfeição não passa de um ideal imaginário, se a busca por ela é uma busca que não se ampara na realidade, para sequer tentar, a gente também precisa, necessariamente, se iludir – e também iludir o outro.
A gente se ilude rejeitando comportamentos e emoções que não gostaria de ter, e ilude o outro jogando pra baixo do tapete uma série de incômodos, de problemas e de erros, cultivando uma aparência tão imaculada quanto fictícia.
No trabalho não é diferente: uma organização que não sabe acolher os próprios erros, reconhecer os próprios erros e aprender com os próprios erros é uma organização em constante negação. Que expele talentos, que precisa estar sempre “pivotando” pra sobreviver e que vive sob a constante tensão de que o castelo de cartas possa desabar a qualquer momento.
Um sacode do mercado financeiro, uma instabilidade geopolítica, um grande contrato cancelado, uma pessoa importante para a operação atravessando um momento difícil… e não sobra pedra sobre pedra.
O conceito de empresas psicologicamente saudáveis, que (entre outras coisas) é intencional em enxergar erros como oportunidades de aprendizado, tomou conta do mundo corporativo nos últimos anos.
(Infelizmente, eu não peguei o trem da segurança psicológica a tempo e burnoutei antes)
Tolerar nossos próprios erros, e também os dos outros
Não vou tentar te impressionar, dizendo que aprendi a lidar com isso de uma vez por todas e te mandando pra um link onde você também pode aprender a se livrar do perfeccionismo em 5 dias. Não é assim que funciona.
É um processo lento, árduo. E feio. Um processo em que a gente vai aprendendo a se dançar na corda bamba entre, de um lado, achar que precisa tirar 10 em tudo e, do outro, se afundar nas próprias limitações e imperfeições a ponto de não conseguir sequer comparecer na prova.
E talvez uma reflexão importante seja a de justamente não se preocupar tanto com a possibilidade da queda.
Até porque, cá entre nós, ela vai acontecer.
Lembro que uma vez ouvi alguém, juro que não lembro quem, falando sobre como lidar com a autocrítica. Essa pessoa sugeriu começar o trabalho do lado de fora – porque pessoas autocríticas normalmente também são muito críticas com outras pessoas.
Ao pesar um pouco menos a mão e o olhar na vida e no trabalho do outro, a gente começaria a meio que automaticamente pesar menos a mão no olhar pra dentro.
Volta e meia eu lembro disso, e devo confessar que funciona – ao menos pra mim. Alguns anos atrás, eu era a pessoa que implicava com erro de ortografia em anúncio – afinal, sol e lua em Virgem e cluster C do DSM.
Eu ficava procurando erro de continuidade em filme. Me irritava até com quem falasse fora da norma culta e metesse um “pra mim fazer”, “nóis fomo”. Deus do céu como eu era chata!
Nos últimos tempos, percebo que esse lado cri-cri vem dando lugar ao ranço. Ah, o ranço merece um capítulo especial. Não falo de senso crítico, falo de ranço mesmo. Devotar toda a nossa atenção ao que não nos agrada nos tira tanta, mas tanta energia, e nos deixa tão, mas tão mais paralisados com a nossa própria autopercepção.
Se você é uma pessoa perfeccionista, crítica e cheia de ranço em reabilitação como eu, só confia no que eu tô dizendo: a vida fica muito mais legal quando a gente deixa de carregar esse peso desnecessário.
Fazendo as pazes com o medo de errar
Esses dias, eu conversava sobre aprender novos idiomas com a instrutora da academia onde tenho ido aqui perto e outras pessoas que treinavam junto.
Pra quem não sabe, eu moro na Holanda desde 2017. Cheguei falando inglês, espanhol e um pouquinho de italiano – e nos primeiros meses estudei muito o holandês, idioma oficial daqui. A instrutora, que também aprendeu a falar diversos idiomas (ela tem holandês e espanhol nativo e um inglês super fluente), comentou: “o segredo pra falar bem um idioma é não ter medo de errar”.
Na hora, eu respondi pra ela “não ter medo de errar é o segredo para aprender um idioma e para praticamente qualquer outra coisa na vida”.
Dali conversamos sobre andar de skate, sobre patinação no gelo e sobre andar de bicicleta. E o que encontramos em comum, cada um de nós tendo atravessado uma fase de medo de cada uma dessas atividades, foi que ter feito as pazes com o medo de cair (e de errar) até chegar o ponto de superá-lo foi o que nos permitiu realmente entrar no estado emocional de entrar em movimento.
Eu não pedalava quando cheguei aqui na Holanda – falei um pouco sobre isso no primeiro episódio da série Recomeçar. Fiz adaptações, dei tempo ao tempo, procurei ajuda profissional, fiz a minha parte e hoje, finalmente, tenho muita tranquilidade em usar o principal meio de transporte aqui da Holanda como meio de transporte.
Entendo que pensar em perder o medo de algo, de superar o medo de algo ou de sequer sentir esse medo pode parecer impensável pra muitos de nós, em inúmeras situações. E eu sei também que dizer pra você parar de ter medo de errar é o mesmo que dizer pra uma pessoa ansiosa parar de se preocupar. Não funciona.
O que pode começar a funcionar é reconhecer esse medo em primeiro lugar.
Fazer as pazes com os meus medos tem sido fundamental pra mim nesses anos e anos de trabalho interno na minha própria saúde mental. A autocompaixão é o recurso aqui: perceba que o medo é parte de você, parte que quer te proteger, te manter vivo. Aceite que ele existe e parar de brigar com ele. Ouça: o que ele vem te dizer?
Celebrar as vitórias, e também as c*gadas
Por último, quero trazer uma das experiências mais terapêuticas que eu já tive com a minha própria intolerância ao erro.
Há uns 5 anos, ainda nos altos e baixos do pós-burnout e de uma vida sem saber direito se eu era uma pessoa desempregada ou autônoma, descobri uma aula de teatro de improvisação em uma cidade aqui perto, chamada Eindhoven. A cidade fica a 40 min de trem daqui, a aula era barata e em inglês, sediada em um centro de apoio a expatriados. Achei que seria divertido rir um pouco, socializar e sair de casa. Foi uma das melhores decisões daquele ano.
Eu arriscaria dizer que o teatro de improvisação é um excelente recurso a pessoas que tendem a ser rígidas, perfeccionistas e intolerantes a erros. Porque não existe erro na improvisação. Não existe a palavra “não”. Tudo é recurso.
A pior ideia pode ser revertida na piada ou na cena mais hilária do dia. Existe tanto uma dinâmica interna como externa na improvisação: o quanto você consegue se conscientizar do seu censor interno e silenciá-lo durante pelo menos uma hora? O quanto você consegue, também, ouvir o outro sem julgá-lo e colocar-se a disposição de criar com o outro?
U m dos exercícios mais geniais da aula foi o I F*CKED UP (que pode ser traduzido livremente por FIZ C*GADA). A dinâmica, se bem me lembro, era: você contar uma história pra você mesmo, mas em voz alta, começando por “era uma vez”, mas dando um passo a cada palavra. Por exemplo: “era (Pé Direito na frente) uma (PE) vez (PD) uma (PE) floresta (PD) encantada (PE) onde (PD) vivia (PE) uma (PD) fada”… O que acontece é que a gente se confunde, troca as pernas, fala mais de uma palavra. E aí tá o exercício: na hora do erro, pisar com força no chão, jogar os braços ao alto e gritar a plenos pulmões:
FIZ C*GADA.
Esse exercício talvez não te impressione ao ler ou ouvir, mas a prática – ainda mais em uma sala com 20 pessoas, cada uma andando em uma direção, contando suas histórias pra si e, inevitavelmente cravando o pé no chão, erguendo os braços e dizendo, FIZ C*GADA – teve um poder inegável. Pra mim, pelo menos. Parece que, lá pela 3a ou 4a cagada, eu havia exorcizado o censor pelos meus pés, meus braços e minha voz.
E aqui também reside algo valiosíssimo: a gente faz muito bem em ler sobre isso tudo, em falar sobre isso tudo e refletir sobre isso tudo. Mas tem coisa, meus caros e caras, que nossos ossos aprenderam e são nossos ossos que precisam reaprender.
O burnout me ensinou o valor de celebrar as pequenas vitórias. Falo disso com muita frequência nos cursos, nas entrevistas, nos livros. Mas ele também, agora eu percebo, ainda me ensina a ter menos vergonha – e quem sabe até um pouco de orgulho – das minhas c*gadas. Afinal, (se segura que lá vem piada ruim) são elas que adubam a vida.
Revisite um ponto em que o erro ou o senso de insuficiência pode ainda te trazer dor.
Como você pode recomeçar por aí hoje?
Como você pode levar essa lição para o seu corpo?
E você sentir à vontade, deixe nos comentários um erro bobo que você cometeu recentemente.
Partilhar dos nossos erros e nossas cagadas também tira o peso social de precisarmos ser sempre impecáveis.
Repito: ser impecável é tarefa impossível.
E aqui não trabalhamos com tarefas impossíveis.
Leituras recomendadas:
- Failwise, uma newsletter que ressignifica a palavra fracasso no mundo do empreendedorismo, escrita pela Nati Pegoraro, uma das melhores profissionais com quem já trabalhei
- A Grande Magia, Elizabeth Gilbert (livro)
- A Coragem de Ser Imperfeito, Brené Brown (livro)
- Honrar os Recomeços, episódio 1 desta série (vídeo)
- Reagindo ao TED Talk O Poder da Vulnerabilidade, de Brené Brown. PhD (vídeo)
Este post tem 4 comentários
Impecável! Total domínio sobre o assunto! Quanto aprendizado , quanta superação e tudo publicado com leveza deixando o sentimento de esperança , que é possível sim, ressignificar.
Se eu for depressa, nunca chego.
Devagar, vou
Com o meu ser e com sossego:
Existo, estou.
Fernando Pessoa
In Poesia 1931-1935
Você é maravilhosa, querida! Obrigada 💛
Eu começo! 🙋🏽♀️
Meu erro foi achar que escreveria esse texto aqui em UMA hora, depois de ter passado meses sem escrever intencionalmente. E que conseguiria fazer algo simples (logo eu!). Levei quase 5 horas só pro rascunho. Ainda bem que hoje em dia eu não tenho mais compulsão por encher a agenda, e esse erro de cálculo não vai me custar tanto assim 🙂🤡